quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

antropologia na cozinha e a força da comida na vida social


O antropólogo Claude Lévi-Strauss disse que o espaço da cozinha é o cenário privilegiado de reprodução das classificações culturais de uma sociedade. Para ele, comer e cozinhar é uma experiência humanizadora. Ele vai dizer que, assim como não existe sociedade humana sem língua falada, não existe sociedade que, de um modo ou de outro, não processa seu alimento. A cozinha para Lévi-Strauss, do mesmo modo que a linguagem, revela-se como eixo central da integração entre natureza e cultura. Ele mostra que o acesso aos alimentos e sua incorporação, ingestão são atos sempre mediados pelo sistema simbólico no qual estão inseridos. Para ele, a ordem alimentar constitui-se em um dos níveis onde se exprime simbolicamente a representação do mundo.

Há, por exemplo, estudos antropológicos sobre o tema do parentesco que falam de relação de alteridade consubstanciada, que é uma percepção reveladora da força da comida na vida social. Comermos da mesma comida é como sermos feitos da mesma substância, o que pode equivaler ao sentido tão forte quanto ao que concedemos a consanguinidade. Esses estudos mostram que a comida nos conecta, cria relação, vínculos.

Saber quais são os alimentos comestíveis, definir a forma de prepará-los, de combiná-los e decidir com quem e como partilhar são distinções de ordenação social e cosmológica. Falar de comida e de cozinha não é apenas falar de nutrição, prazeres gustativos, mas basicamente falar de princípios simbólicos e de alteridade.

Patrícia Delgado Mafra

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O inhame.

Para dar uma ideia do potencial simbólico e ontológico da comida, destaco aqui as constatações de Malinowski em “Coral Gardens” (1935) por enfatizar exatamente a relação que os melanésios desenvolvem com a natureza (vegetal) a partir da horticultura, colocada - para além de seus atributos objetivos ligados a alimentação - como elemento central de sua cosmologia e socialidade. Não são os trobriandeses os donos da terra. A terra é que é a dona dos trobriandeses. Essa percepção é central na cosmologia melanesia. Veja que interessante, nas roças trobriandesas ocorrem passeios para a sua apreciação (1935:80). Ocorre uma elaboração estética e prestigiosa das hortas, assim como hortas “de referência” que operam na socialização dos mais novos nessa prática.
Malinowski nos apresenta que há uma hierarquia dos vegetais em que o inhame tem uma preeminência prática e cosmológica. Isso aparece no modo como os nativos descrevem o desenvolvimento do taro* (1935: 140-141). A produção das raízes, a maneira como elas se ramificam e como elas se reproduzem ( e como ocorre, no pensamento nativo, a relação desse desenvolvimento da parte aérea com a parte subterrânea) está diretamente relacionado a preeminência do inhame e à teoria nativa da autoctonia. Como para eles a terra é que é a dona das pessoas, não se trata apenas da socialização do resultado da plantação, mas a terra é socializada, ela faz parte desse corpo social, desse modo de socialidade. 
A questão da alteridade consubstanciada na vida agrícola dos trobriandeses é operada pela terra e pela comensalidade (1935:47) . Na questão de troca e parentesco geral da Melanésia, a comida exerce uma consubstancialidade que cria parentesco real entre eles. Quando se troca o inhame entra uma questão de doação de corpo, se está dando um pouco da sua substância (e também da terra) para o outro. Entretanto, a troca nunca é equivalente, sempre vai ter um a mais que é uma alteridade que estará sempre pressuposta nessa relação. 

domingo, 25 de janeiro de 2015

na horta e na cozinha

 na horta e na cozinha 
O espaço da fazenda é importante na construção das relações dentro do grupo doméstico  De um modo geral, as atividades no universo camponês se organizam em dois espaços: na roça e na casa, o que define a centralidade dos papéis do marido e da esposa que são referência para os papéis femininos e masculinos. No contexto etnográfico ao qual me refiro, a relação entre mãe e filha também é construída em torno da casa, da horta e da cozinha, bem como a relação do filho com o pai está baseada nos afazeres da roça, na manutenção das ferramentas e no cuidado com as vacas. Nesse sentido, cabe às mulheres o preparo dos alimentos, o cuidado com as crianças e com a casa. Além disso, é de sua competência o trato da criação de aves e suínos e, sobretudo, a horticultura.
As roças que visitei são de mandioca, milho, cana, feijão, arroz, pimenta e café. Nem sempre há espaço na fazenda para o plantio de roça de feijão e arroz, principalmente quando há criação de gado, situação em que é prioritário o cultivo da cana e do milho para forragem. Nesses casos, é comum plantar feijão e arroz em regime de meação e / ou arrendar pasto para o gado, o que vai depender da área da fazenda e do cálculo operado pelo grupo doméstico. As decisões em relação a roça são da competência do homem, marido, pai e proprietário da pequena fazenda. O cultivo na roça depende sobremaneira das relações que ele estabelece com parentes e vizinhos e a organização deles em “comunidades rurais”, que além de trabalharem uns para os outros em regime de mutirão, juntos, demandam à prefeitura insumos e máquinas para o preparo do solo. Nos dois povoados em que estive, ocorre mensalmente reunião da comunidade para deliberar sobre a escala do uso do trator e máquinas, divisão de sementes, de adubos, organização de festas, manutenção da capela e do salão de reuniões do arraial.
Observo, portanto, que há uma distinção entre “plantar roça” e “plantar hortaliça” nesse contexto. A roça (mandioca, cana, milho, café, arroz e feijão) é uma atribuição dos homens e está, de modo geral, voltada para a produção de excedentes. Além da porção para o consumo da família, é preciso produzir para a manutenção da criação, bem como é desejável uma porção para comercializar. A horta é exclusivamente voltada para a casa, para a alimentação do grupo doméstico. Horta e cozinha, portanto, são espaços físico e simbolicamente contíguos cujos saberes e práticas são controlados majoritariamente pelas mulheres.**
**trecho do texto "Na horta e na cozinha: práticas femininas e saberes vegetais no universo camponês."  Trabalho de conclusão do curso MNA-818 (Antropologia das emoções): Antropologia da Natureza: o humano e o mundo vegetal. PPGAS/MN/UFRJ. Professores: Luiz Fernando D. Duarte e Ana Maria L. Daou (IGEOC/UFRJ). 2009/1.  

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

manjericão

Lembrei de um episódio que ocorreu comigo durante minha estada na casa de uma das famílias que me recebeu para o trabalho de campo. Nessa estada, como já disse antes, participei diretamente do trabalho na cozinha. Certo dia, comentei com Dona Sebastiana sobre um dos pratos que havia aprendido a preparar recentemente: panquecas recheadas de carne moída guarnecida por molho de tomate. “Para experimentar uma comida diferente”, Dona Sebastiana pediu-me que no almoço do dia seguinte eu o preparasse para toda a família.

Os ingredientes - a carne moída, farinha de trigo, leite, ovos, queijo, tomates, cebola e alho - já faziam parte do cardápio diário da família e estavam disponíveis na dispensa da casa. Notei também que em sua horta, havia muitos pés de manjericão e como costumo utilizá-lo nos pratos a base de massa e tomate, resolvi espalhar suas folhas sobre as panquecas antes de lavá-las ao forno. Na hora em que sentamos para almoçar, a filha de Dona Sebastiana ao colocar na boca a primeira garfada, engasgou e saiu para o terreiro para cuspir a comida. Seu pai perguntou o quê eram aquelas folhas verdes que eu havia colocado no prato. Dona Sebastiana parecia tentar saborear a comida, mas me perguntou porque havia colocado “remédio” nas panquecas. Sua filha retornou à mesa e retirou as panquecas de seu prato, pediu desculpas por não ter gostado e disse-me que nunca havia visto  “essa erva”  ser usada  na comida e que era usada apenas para fazer ungüentos na extração de pus em inflamações subcutâneas. Por fim, pedi mil desculpas e expliquei que o uso que conheço e faço é o de aromatizar a comida preparada à base de tomate. Para consertar o equívoco, pedi licença, levei o tabuleiro para a beira do fogão, retirei todas as folhas de manjericão e preparei outro molho de tomate, derramei-o em cima das panquecas e recoloquei-as no forno por alguns minutos. Voltei com as panquecas para a mesa, mas a filha e o marido de Dona Sebastiana não quiseram mais comê-las, experimentaram e lamentaram o forte gosto do “remédio” que ainda permanecia na comida. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Cozinhas

As casas que visitei e as que me hospedei têm uma característica que é comum entre elas, é o fato da fornalha, fogão a lenha, ficar em um aposento que é separado da casa. A cozinha, como se chama, fica dentro da casa e não é muito usada para cozinhar, apenas para guardar os alimentos, ou quando é tarde da noite poder quentar uma comida ou fazer um chá no fogão a gás. Geralmente, a cozinha que não é usada para cozinhar é enfeitada com jogos de louças nas prateleiras, estas quase sempre adornadas com paninhos bordados. O local onde fica a fornalha é um aposento que quando não é separado, fica numa varanda, numa parte mais perto do quintal, voltado para fora da casa.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

uma antropóloga na cozinha

Entrei na faculdade de ciências sociais aos 27 anos, já mãe de uma menina de 6 e ao concluir tive o privilégio de fazer o mestrado em antropologia, pegando a trilha da antropologia urbana, estudando os camelôs. "A pista e o camelódromo: o cotidiano dos camelôs no Centro do Rio" é o título da dissertação que defendi no PPGAS - Museu Nacional. Depois de um intervalo de 3 anos volto ao Museu Nacional para cursar o doutorado e realizo  um estudo de comunidade na região Alto (rio) Paranaíba, onde morei com duas famílias de pequenos agricultores no interior do estado de Minas Gerais. A experiência no trabalho de campo foi essencialmente nas cozinhas das duas fazendas, o que definiu os rumos da pesquisa "Casa, comida e criação no Alto Paranaíba".  Infelizmente tive que interromper a escrita da tese em 2013 por motivos de saúde. A saúde vai bem e em breve retornarei ao doutorado. Enquanto isso, estou me profissionalizando em cozinheira pelo Senac-RJ e estou muito encantada com o mundo da cozinha profissional e da gastronomia.