quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

comida, corpo e alteridade (notas de leitura)

Para a cosmologia ameríndia diferentes corpos produzem diferentes perspectivas.
No caso dos kaxinauá (Pano), desde a concepção do indivíduo até a vida adulta ocorre um processo de “fabricação” do corpo que prepara o sujeito para a sua socialização e aprendizados. (Cecília McCallum).

Constata-se, a partir de diversas etnografias de outros povos ameríndios, que o corpo é o articulador de significados sociais e de cosmologias e é com ele que se elabora uma perspectiva do mundo e de si.

Cecília MacCllum está chamando a atenção da centralidade do corpo na cosmologia dos kaxinaua, e nas discussões sobre parentesco, xamanismo, guerra e canibalismo. Na constituição da pessoa, o corpo é fundamental e é uma entidade ontológica que registra as experiências vividas individual ou coletivamente...  

Há uma fabricação do corpo realizada por uma combinação de intervenções constantes de substâncias que o conectam ao mundo: fluídos corporais, banhos e ingestão de ervas e soluções, comidas, fumaça do tabaco, óleos, tintas vegetais... outro tipo de intervenção no corpo seria a partir dos sentidos auditivos e olfativos.

Ela destaca a centralidade da alimentação, e também da sexualidade, nesse processo de elaboração do corpo/pessoa.

Não é apenas a ingestão de alimentos, mas o compartilhar constante da mesma comida é que faz o corpo, a pessoa e cria uma identificação que reforça a relação de consanguinidade, cria a afinidade e marca a alteridade (com quem não se come junto, por exemplo). O mesmo ocorre com a sexualidade, em que a troca de substâncias reforça o gradiente de afinidade, marca a alteridade (com quem não se pode casar) e cria consanguinidade com a concepção (procriação)...





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O Polvilho Caipira.


Fabiana, uma das filhas de Dona Sebastiana, chegou à fazenda de motocicleta por volta de 7 horas da manhã. Assim que chegou, trocou de roupa, pegou uma rosca de polvilho e sentou num dos bancos da varanda da frente da casa e começou a descascar as mandiocas junto com seu pai, enquanto Dona Sebastiana arrumava a louça do café da manhã e pendurava algumas roupas no varal. Ajudei Dona Sebastiana e depois fui descascar mandioca junto com eles. Quando Dona Sebastiana terminou o serviço da casa substituiu Seu Jair que foi construir o local onde a massa da mandioca seria “lavada” e providenciar alguns galões para armazená-la. Passamos toda a manhã e parte da tarde “cascando” as mandiocas que o Seu José Acário trouxe.
Por volta de quatro horas da tarde encerramos essa etapa lavando todas as mandiocas descascadas e deixando-as na água, numa grande caixa d’água e fomos lavar os tonéis que receberão a massa já lavada. Foram 5 tonéis de 350 litros. Eu e Fabiana esfregamos com esponja e sabão e enxaguamos tudo com muita água vinda de um córrego e que abastece a casa. Aliás, é imprescindível abundância de água para fazer o polvilho. Foi um trabalho muito pesado esse de hoje e “mexemos com água” mesmo depois que o frio e a noite chegaram. Como eu e Fabiana somos as mais jovens, Dona Sebastiana nos encarregou da segunda etapa do trabalho – além de ensaboar e enxaguar os tonéis - transportamos, em quatro ou cinco viagens, cada uma de nós, as mandiocas no carrinho de mão para o local onde ficaram armazenadas, próximas a máquina de moer, distante uns 200 metros do local onde as descascamos. No início da noite, quando terminamos de preparar as mandiocas para serem moídas amanhã de manhã, Fabiana foi preparar a janta com sua mãe. Depois da janta, ajudei a lavar as vasilhas usadas no preparo da comida e me aprontei para irmos à reunião, a primeira, da nova diretoria da associação, da qual Seu Jair se tornou o presidente, marcada para esta noite na capela do arraial. (Notas de campo. Perdizes, 18 de junho de 2008.)
No dia seguinte, o trabalho no polvilho começou ainda mais cedo. Por volta de 6:30. Enquanto eu descascava o restante das mandiocas, Fabiana e Seu Jair foram passar a mandioca na máquina de moer. Dona Sebastiana descascava parte das mandiocas comigo, mas estava envolvida com os afazeres da casa, principalmente com a roupa e a comida. Depois de tudo moído começamos a transportar a massa da mandioca em latões no carrinho de mão até onde os tonéis estavam preparados e a pequena estrutura - de quatro toras de bambu grossas fincadas no cimento do pátio da casa - em forma de um grande coador, feito com um pano de fazer lençol, “virgem”, lavado, seco ao sol e passado a ferro - receber a massa. Depois do almoço começamos a “lavar a massa”.
Lavar a massa: coloca-se uma quantidade de massa nesse pano e enquanto Fabiana jogava várias bacias de água, Dona Sebastiana mexia a massa com as duas mãos, e um líquido branco escorria para dentro de um tonel mais raso localizado debaixo desse “coador”, de onde eu retirava o líquido e colocava num dos tonéis de 350 litros. Depois da massa lavada, ela era descartada. Colocávamos dentro de um carrinho de mão e quando ele estava bem cheio, dispensava-a, segundo orientação de Dona Sebastiana, longe da casa, próximo ao córrego, despejando todo esse resíduo na terra mesmo.
Hoje é o terceiro dia “mexendo com mandioca”. Moemos o restante das mandiocas que haviam sido descascadas e continuamos com a lavagem da massa. Enquanto isso, Seu Jair foi “arrancar” as mandiocas de sua terra, pois até então só havíamos mexido com as trazidas por Seu José Acário. Eu e Fabiana, num certo momento fomos ajudar Seu Jair retirando a braquiara que havia atingido todo o mandiocal. Braquiara é uma vegetação que se não capinar o mandiocal, ela cresce muito e se enrosca nos troncos, dificultando extração das raízes. Segundo Fabiana, “braquiara é pasto que se alastra”. Enquanto Fabiana tirava a braquiara com a enxada, Seu Jair extraía as mandiocas e eu as transportava no carrinho de mão até a varanda “de trás” onde iríamos descascá-las. Depois disso, Seu Jair começou a preparar o jirau com 12 metros de comprimento por 2 metros de largura, onde a goma peneirada ficará exposta ao sol durante 5 ou 6 dias. (notas de campo. Perdizes, 20 de junho de 2008.)  
No quarto dia pela manhã começamos a entornar o líquido branco depositado nos tonéis, onde a goma assentara no fundo. Retiramos a goma com prato de ágata usado como espátula e a espalhamos sobre um pano estendido numa mesa ao sol. Toda essa goma, já seca, é peneirada e transportada em grandes bacias para o jirau. Esse polvilho ficou ao sol durante mais de dez dias.
O procedimento da feitura do polvilho é basicamente esse, o que foi repetido depois com as mandiocas da própria fazenda. Todas as tardes, nós tínhamos que embrulhar o polvilho no lençol em que estava exposto e protegê-lo com plástico para não pegar sereno. Todas as manhãs, quando o sol firmava, retornávamos ao jirau e abríamos o lençol para que ficasse exposto ao sol forte, próprio dessa época do ano na região. Todo esse polvilho seco foi mais uma vez peneirado e armazenado para ser distribuído por três casas. A casa de Dona Sebastiana, a da Fabiana e a do Seu José Acário.[1] A partir de então, iniciava a secagem do “polvilho da casa”.
Depois dessa temporada de trabalho mais intenso que foi a da feitura do polvilho, o cotidiano da casa voltou ao normal e minhas tarefas também. Não precisava, por exemplo, acordar no mesmo horário que o casal. Nos dias comuns, quando eu acordava, Seu Jair já havia acendido a fornalha (fogão a lenha) e saído para a roça ou para o arraial e Dona Sebastiana coava outro café. Logo, me juntava a ela auxiliando no preparo de alguma merenda para o “leite da manhã”. Colocávamos biscoito de polvilho, pão de queijo ou bolo de mandioca para assar. Costumava colaborar lavando as vasilhas utilizadas. Tomávamos um café preto e enquanto o forno assava a merenda, nos dirigíamos ao paiol para debulhar o milho a ser dado às galinhas. Depois da merenda, varria o terreiro, enquanto Dona Sebastiana catava o feijão e iniciava o preparo do almoço, para logo em seguida estender a roupa no varal, retirada durante o sereno da noite, para terminar de secar. Logo, o sol já estava alto e estávamos almoçando e arrumando a cozinha, preparando o café da tarde e em seguida a janta, para então lavarmos tudo outra vez e, finalmente com a noite, poder tomar banho e nos juntarmos ao Seu Jair que, depois da janta, assistia o noticiário na televisão. Em seguida, estávamos os três, cada um em suas poltronas, cochilando de tão cansados. A minha colaboração na feitura do polvilho foi determinante para que o trabalho de campo se realizasse e também uma experiência importante na minha relação com essa família. Foi a partir de então que começaram a me ver como uma filha emprestada.