Tenho pensado no potencial do complexo
indígena da mandioca sobre o complexo cerealífero europeu do trigo... aí lembrei que estamos
vivendo a celebração dos alimentos "sem trigo" estrelada pela
mandioca na figura da tapioca... o mito de origem da mandioca a
revela como símbolo da mistura do branco português com o indígena. Na história
da culinária brasileira, a mandioca é central quando o assunto é adaptação dos
colonizadores, e sobretudo das cozinheiras, ao chamado “pão dos trópicos”.
Gilberto Freyre fala disso. As “casas de farinha” e toda uma
etnografia existente sobre o cultivo e consumo da mandioca revelam que se trata
de potente mediador e agregador de pessoas. “mexer com polvilho”, “fazer
farinha” para mulheres camponesas é uma operação de conexão com
outras mulheres e uma forma de criar “fartura”, abundância...
processando a mandioca. Conversando com as mulheres aprendi que um roçadinho de
mandioca é pura fartura, a garantia de alimento o ano todo... a
mandioca pode ficar debaixo da terra até dois anos depois de já estar pronta
para o arranque, o que facilita na questão do armazenamento desse alimento... e
então onde tem mandioca tem a farinha, tem o polvilho, tem um bolo doce, tem
tapioca, pão de queijo, beiju... é quase uma bênção esse alimento...
Abaixo cito o mito da mandioca
que eu encontrei nesse artigo aqui:
A Palavra mandioca do verbal ao verbo-visual . Autora: Beth
Brait. Revista BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 1, p.142-160, 1o sem.
2009.
“MANI-OCA
(Casa de Mani)
Em tempos idos, apareceu grávida a filha de um chefe selvagem, que
residia nas imediações do lugar em que está hoje a cidade de Santarém. O chefe
quis punir no autor da desonra de sua filha, a ofensa que sofrera seu orgulho e,
para saber quem ele era, empregou debalde rogos, ameaças e por fim castigos
severos. Tanto diante dos rogos como diante dos castigos a moça permaneceu inflexível,
dizendo que nunca tinha tido relação com homem algum. O chefe tinha deliberado
matá-la, quando lhe apareceu em sonho um homem branco, que lhe disse que não
matasse a moça, porque ela efetivamente era inocente, e não tinha tido relação
com homem. Passados os nove meses, ela deu à luz uma menina lindíssima e
branca, causando este último fato a surpresa não só da tribo como das nações
vizinhas, que vieram visitar a criança, para ver aquela nova e desconhecida
raça. A criança, que teve o nome de Mani e que andava e falava precocemente,
morreu ao cabo de um ano, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor. Foi
enterrada dentro da própria casa, onde era descoberta diariamente, sendo também
diariamente regada a sua sepultura, segundo o costume do povo. Ao cabo de algum
tempo, brotou da cova uma planta que, por ser inteiramente desconhecida, deixaram
de arrancar. Cresceu, floresceu e deu frutos. A terra afinal
fendeu-se; cavaram-na e julgaram reconhecer no fruto que encontraram o corpo de
Mani. Comeram-no e assim aprenderam a usar a mandioca.[O fruto recebeu o nome
de Mani-oca, que quer dizer: casa ou transformação de Mani, nome que
conservamos corrompido na palavra mandioca, mas que os franceses conservam
ainda sem corrupção] (COUTO DE MAGALHÃES, 1935, p. 167-168).”