terça-feira, 31 de janeiro de 2017

uma antropóloga na cozinha - casa, comida e parentesco no vale do Rio Perdizes.


O povoado de Perdizes, localidade rural onde realizei trabalho de campo, fica no vale do rio Perdizes, ao redor de um arraial, distante cerca de 20 quilômetros da sede do município e está localizado em área de cerrado, contíguo aos povoados da Tijuca e do Brejãozinho. As fazendas situadas nesses povoados variam de tamanho e de tipo de produção. Ainda no início do trabalho de campo, a caminho do povoado, na estrada de terra que liga a cidade ao arraial, o motorista de taxi que constantemente me conduzia, apresentou o local assim: Essas terras que a senhora tá vendo aí são tudo do pessoal de fora, já os mineiros daqui são tudo pequetito. Essas terras são tudo de café. Os mineiros daqui só têm mesmo umas vaquinhas pro leite da criação.
Quando cheguei no Triângulo Mineiro-Alto Paranaíba, encontrei uma rede de contatos já estabelecida pela equipe do projeto “Sociedade e Economia do Agronegócio: Um estudo exploratório” ao qual minha pesquisa se vinculou. O grupo de colegas já frequentava a região e foi a partir de sua extensa rede de interlocutores que fiz os contatos que me levaram ao Arraial dos Perdizes.
A pesquisa parte da percepção de que nas narrativas sobre o "agronegócio" e sobre uma suposta “pujante e homogênea agricultura empresarial” ocorre uma certa invisibilidade dos trabalhadores que atuam nessa agricultura e do pequeno produtor rural nativo. A pesquisa que realizei então propunha conhecê-los por meio de um estudo antropológico sobre a vida na roça  na região do “café do cerrado”.
O processo de negociação do trabalho de campo teve início a partir do contato com as entidades sindicais, frequentando assembleias e reuniões comunitárias. O objetivo era estabelecer uma relação de confiança e aceitação da pesquisa que me possibilitasse ficar mais próxima da vida diária dos pequenos produtores. Com a frequência nas reuniões e das visitas ao pessoal dos Perdizes pude explicar melhor meu trabalho. Dona Sebastiana gostou de mim e da minha proposta de fazer um estudo sobre a vida na roça e me convidou para ficar em sua fazenda. Dona Emília também se ofereceu para me apresentar as comunidades da Tijuca e Brejãozinho e me chamou para passar uma temporada com ela em sua casa.
Aceitei os convites e, em ambas as fazendas, no decorrer de minha estada em suas casas, ajudei com o serviço e quando me dei conta estava inserida na divisão das tarefas, lavando vasilhas, tirando o pretume das panelas, cascando mandioca, aguando a horta, picando verdura, debuiando milho, varrendo o quintal, depenando galinhas, cuidando das crianças, cozinhando arroz... Quase não saíamos de casa. Mais precisamente, quase não saíamos das cozinhas e quintais. Nos poucos passeios e visitas que fazíamos às vizinhas e parentes, nosso lugar era sempre a cozinha delas, sua horta, seus pintinhos, os pé de fruta. Nessas ocasiões enquanto proseava, ajudávamos a anfitriã no que fosse preciso: varrer o quintal, amassar pão, lavar as vasilhas, enxaguar roupa e ajudar a pôr no varal... a vida na roça é muito custosa e ajuda nunca é demais.
Dona Sebastiana e Seu Jair me tratavam carinhosamente como uma filha emprestada e nessa condição deveria agir de acordo com princípios que orientam essa relação como filha mulher.  Nessa rotina, minha identidade como pesquisadora universitária foi sendo ignorada pelos meus anfitriões. No dia a dia na fazenda, no calor das tarefas, para os meus pais emprestados eu era apenas a filha boa de serviço.
A minha ida para a casa deles dissipou a atmosfera do café vivenciada anteriormente no cotidiano da pequena cidade, sede do município, e nas conversas e reuniões sindicais e comunitárias.  Ficar na roça trouxe para o primeiro plano da etnografia o cotidiano interno da fazenda, a minha relação com minhas anfitriãs, principalmente Dona Sebastiana e seus parentes e, mais intensamente, a rotina de trabalho nas cozinhas e quintais.
O processo de incorporação à vida doméstica foi de tal maneira que inicialmente me causou dúvidas a respeito da validade de um estudo feito a partir de um trabalho de campo tão imerso na cozinha, na intimidade da casa, à beira da fornalha. Depois percebi que a forma como fui acolhida é parte de um processo difuso de produção de vínculos no vale dos Perdizes. As relações que dão sentido à comunidade são vínculos produzidos em processos como o que eu vivenciei. Trata-se de uma prática comum orientada para transformar as diferenças em semelhanças, impulsionando a dinâmica de reprodução da casa e da própria comunidade.
Aqui na comunidade é tudo aparentado! Essa é uma frase recorrente quando apresentam os Perdizes. Os vínculos que conectam pessoas, casas e fazendas desses povoados são pontos em uma espécie de continuum de relações que vão das mais distantes às mais próximas. Tornar-me filha emprestada revelou a natureza expansiva das casas e a sua aptidão em incorporar à comunidade sujeitos e elementos de fora. O tornar-se parente, por meio desse processo, compõe um esforço maior para criar e reforçar um idioma comum na localidade, um processo político coerente com  a história recente do vale dos Perdizes.
A descoberta do cerrado é um marco nos Perdizes. Representa o momento da chegada do café , do pessoal de fora. Há uma narrativa comum acerca das consequências desse fato na região. Uma constatação recorrente entre eles é a de que falta gente para trabalhar na roça. Há um discurso comum nos povoados de ruptura das relações na comunidade em razão das mudanças associadas à descoberta do café do cerrado.
O processo de incorporação à casa cria vínculos entre as pessoas podendo torná-las parentes cada vez mais próximos. Esse processo de produção do parentesco, que se realiza a partir do cotidiano da casa e da cozinha cria e fortalece as relações na roça e é uma resposta da comunidade a esses desafios vividos por eles desde a descoberta do cerrado.
A cozinha, então, se coloca como o suporte de um processo que é também político e mostra que a casa é permeável à comunidade e se constitui da relação com a exterioridade, porém há modos de entrar e regras para dela sair. São os trânsitos entre elas e os deslocamentos em seus interiores que vão dando sentido a vida em comum na localidade. Esses deslocamentos são associados ao preparo, oferta, circulação e compartilhamento de comida, atividades realizadas nas cozinhas pelas mulheres da comunidade.